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"Veja" entrevista Mares Guia

  • 5 de jul. de 2018
  • 10 min de leitura

A escola pública está mudando em Minas Gerais. Esse era o comentário corrente em 1996. Naquele ano, as avaliações nacionais de ensino mostravam resultados surpreendentes. Além de figurar no topo entre os Estados, a evasão e a repetência haviam caído. As mudanças chamavam a atenção de autoridades, especialistas e estudiosos de todo Brasil e começavam a ser adotadas em outros locais.

O jornalista Marcos Sá Corrêa foi então a Belo Horizonte para ver o que estava acontecendo. A pergunta era: quem está por trás dessa verdadeira revolução? Todas as respostas levavam ao nome de Walfrido dos Mares Guia, o ex-secretário que tivera coragem de dar autonomia às escolas, sustentar diretores democraticamente eleitos e implantar a avaliação de desempenho.

Sá Corrêa conversou com Walfrido e fez uma longa entrevista, publicada nas Páginas Amarelas de “Veja” em 7 de agosto.

Leia a entrevista completa a seguir:

Na semana de volta às aulas, é hora de lembrar que nem tudo mudou para pior no ensino brasileiro. Existem mudanças para melhor, e boa parte delas envolve o mineiro Walfrido dos Mares Guia Neto. As reformas educacionais que ele implantou em Minas Gerais, baseadas em autonomia administrativa para as escolas, treinamento de professores e avaliação dos alunos, são um modelo de simplicidade e eficácia. Em Brasília, atribuem-lhe a patente de uma onda nacional de recuperação do ensino fundamental que o Ministério da Educação tenta organizar.

Engenheiro químico, Walfrido saiu da faculdade em 1966 diretamente para as salas de aula do Pitágoras, um curso particular que, trinta anos depois, atende mais de 30.000 alunos. Já mandou professores até o deserto do Iraque, para ensinar a brasileiros degredados nos canteiros de obras da empreiteira Mendes Júnior. Em 1991, ele saiu da presidência do Pitágoras para as entranhas de um sistema incomparavelmente maior e pior do que o seu – a rede pública de Minas Gerais. Como secretário do governo Hélio Garcia, passou a cuidar de mais de 6.500 escolas, onde se matriculam 93% dos alunos do ensino básico no Estado. Neles, entendia-se por ano letivo o tempo que sobrava entre as férias e as greves. Infestadas pela praga do clientelismo, as escolas de Minas eram risonhas e francas para os políticos. Eles mandavam e desmandavam. Isso mudou.

Cinco anos depois, Mares Guia não tem nada de oficial com escola pública. É vice-governador do Estado. Seu gabinete, em Belo Horizonte, está a três quadras da secretaria – onde, no entanto, continua mandando, tanto que a equipe toda continua a ser a que ele montou. Aos 53 anos, Mares Guia explicou sua experiência nesta entrevista a VEJA:

VEJA – A escola pública é diferente da particular?

MARES GUIA – Depende. Mexo com educação há mais de trinta anos. Mas, quando virei secretário de Educação, fiquei espantado ao ver como era a nomeação de diretores. Nós, no curso Pitágoras, levávamos em média quinze anos para ter a ousadia de botar um professor da equipe na direção de uma escola. Na rede estadual, trocava-se de diretor como se muda de roupa. Pouco antes de assumirmos a Secretaria de Educação, o governador Newton Cardoso, no fim do mandato, havia trocado mais de 400 diretores, entre janeiro e março de 1991. Um deputado votava contra o governo, caía o diretor apadrinhado pelo deputado.

VEJA – Coisa de Newton Cardoso?

MARES GUIA – Antes fosse. Em Minas Gerais, o deputado do partido majoritário fazia todos os diretores em seu município. Foi assim por trinta ou quarenta anos. Vinha das brigas históricas entre UDN e PSD, que regulavam a política estadual de alto a baixo. O sistema de seleção para o cargo era esse desde o fim da ditadura Vargas. Sem concurso, nada do gênero. No começo, talvez fosse menos escandaloso, porque havia poucas escolas. A rede estadual não tinha vaga para filho de trabalhador. As diretoras de escola não eram profissionais liberais. Eram geralmente filhas de famílias influentes da terra. Mas, a partir dos anos 70, com a escola se abrindo aos filhos dos pobres, começou a política de construção de prédios. Com 6.500 escolas, 230.000 funcionários e 3,2 milhões de alunos na rede, o Estado deu dimensões monstros ao clientelismo. Quase diariamente saía no Diário Oficial a lista dos diretores nomeados pelo governador.

VEJA – Ninguém reclamava?

MARES GUIA – No fim da década de 80, o sindicato de professores começou a se queixar contra as indicações políticas. Mas reclamava timidamente. Não adianta imaginar que ficou desse jeito só porque os políticos queriam. No princípio, deve ter sido até o contrário: alguém foi à casa do político pedir para ser diretor.

VEJA – Diretor tem essa bola toda?

MARES GUIA – A escola tem a cara dele. Mudando o diretor, muda a escola, mesmo o resto todo ficando igual – prédios, alunos e professores. Por isso, começamos por ele. Se queríamos que a escola fosse da comunidade e não do governo, precisávamos tornar esse vínculo inseparável do cargo de diretor.

VEJA – E o que pode um diretor fazer?

MARES GUIA – Se ele dá atenção à família dos alunos, se entende que são aqueles pais, mesmo pobres, que bancam o ensino gratuito via ICMS, se compromete a comunidade com o funcionamento da escola, tudo funciona melhor. A forma mais nobre que encontramos para selar esse compromisso foi eleger o diretor. Esse era nosso Rubicão. Sem atravessá-lo, não faríamos nada de sério no ensino mineiro. Mandamos para a Assembleia Legislativa o projeto de eleição de diretor treze dias após a posse na secretaria. A proposta acabou aprovada por 53 votos a 3, isso numa casa onde havia deputados que faziam mais de 400 nomeações de diretor e estavam convencidos de que dependiam deles para se eleger…

VEJA – Quem, por exemplo?

MARES GUIA – Houve resistências de todos os lados. O PT, que antes de mim defendia a eleição, bateu muito no projeto durante a tramitação. Eu vinha da rede particular, não merecia confiança. Houve uma greve de professores, durante as negociações, que durou 87 dias. Mas, na primeira eleição de diretores, mais de 4 milhões de pais em todo o Estado saíram às ruas, num domingo, para ir à escola do filho participar de uma assembleia e da escolha do diretor. Isto é, houve adesão total, um índice de participação superior ao das eleições políticas, em que o voto é obrigatório.

VEJA – Basta o voto para ser bom diretor?

MARES GUIA – Não. Isso era o que propunha o PT. A eleição de diretor, pura e simples, foi tentada no Paraná na década passada e não deu certo, porque acabava politizando demais a escolha. Graças ao que pudemos aprender com a experiência alheia, adotamos em Minas um sistema prévio de seleção, à base de mérito e competência. Primeiro, os candidatos fazem uma prova, com questões concretas, inclusive sobre administração escolar. Até a bibliografia que cai nos exames foi regulamentada. Faz-se, portanto, uma filtragem. Na primeira seleção, passaram 60%. Em 300 escolas, ninguém foi aprovado. Feito isso, em cada escola os três candidatos com as melhores classificações apresentam, a uma assembleia de pais, alunos, funcionários e professores, seu programa para a escola. Quem ganha ali ao vivo, na hora, os votos da maioria absoluta assume o mandato de dois anos. E pode se reeleger quantas vezes a assembleia quiser.

VEJA – Como ela sabe se quer?

MARES GUIA – Junto com a eleição, instituímos o conselho de administração, baseado no school board americano. Portanto, não foi preciso inventar nada. O sistema é mais velho que a Serra da Piedade. Funciona sob a presidência do diretor, que fica entre seis pais ou alunos maiores de 16 anos e seis professores ou funcionários da escola, todos eleitos por um ano. O conselho manda na escola. O diretor presta contas a esse colegiado, que aprova o orçamento, define o calendário do ano letivo, aprova o projeto pedagógico, tem o poder de sugerir que algum professor seja retirado da sala de aula mesmo que tenha estabilidade. Pode vetar a contratação de um professor, se o diretor quiser empregar uma prima e a maioria disse que não. É um regime de completa autonomia. A Secretaria de Educação manda os recursos para a escola, o conselho decide em que gastar o dinheiro.

VEJA – O senhor poderia dar um exemplo de como isso melhorou a escola?

MARES GUIA – Melhorou espantosamente o aproveitamento das verbas da Educação, o que não é de admirar, quando se pensa na irracionalidade da centralização administrativa. Antes, se a escola precisava de uma geladeira, e todas precisam por causa da merenda, requisitava o material à secretaria, que cuidava de tudo nas 6.500 unidades de 751 municípios. A geladeira, como não podia deixar de ser, custava a sair. E aí um deputado vinha a Belo Horizonte liberar a geladeira. Quando ela chegava ao município, fazia-se festa para recepcionar o político e o eletrodoméstico. Ou seja, todo mundo nessa história bancava o bobo, a começar pelo secretário de Educação, que ficava aqui, assinando papel para comprar geladeira.

VEJA – Isso é caricatura ou caso concreto?

MARES GUIA – Concretíssimo. A aquisição de uma panela de 20 litros, por exemplo, dependia de autorização do secretário. A autonomia do diretor só alcançava a panela de 10 litros. O secretário tratava de cadeiras, mesas, retroprojetores, máquinas de escrever. A que horas ia pensar em educação? Para se ter uma ideia, uma professora de Espinosa, que dista 400 quilômetros em estrada de terra de Montes Claros, onde fica a delegacia regional, tinha de ir até lá corrigir o contracheque se seu salário viesse errado. A correção levava seis meses. A diretora não tinha controle sobre esse assunto. Aliás, não tinha sequer informação. Eram 41 delegacias, concentrando tudo sobre a folha de todas as escolas.

VEJA – Alguém gostava dessa mixórdia?

MARES GUIA – Até hoje tem um promotor público aqui no Estado contestando que a caixa escolar dos conselhos de administração seja uma entidade de direito privado e, portanto, esteja livre da lei de licitação. O sujeito quer que uma diretora lá de Janaúba publique um edital de licitação toda vez que for comprar três carteiras. Tudo isso pode ser muito mais fácil. Reforma de prédio? Nós ensinamos os diretores a fazer um projetinho, padronizado pela equipe da secretaria. É só preencher uma planilha, faz-se um convênio que sai no Diário Oficial e fica público que aquele dinheiro vai para a escola fazer consertos previamente aprovados por seu colegiado. Soubemos de diretoras que saíram pelo comércio local, pechinchando, o que é sempre mais eficaz com dinheiro na mão. E pais de alunos, por estar no conselho, conhecer de perto os problemas da escola, às vezes fazem de graça um serviço. A mudança é fantástica. Em cinco anos, as escolas estão melhores, mais bem equipadas, com as vidraças inteiras.

VEJA – Nisso, cada escola faz o que quer?

MARES GUIA – Criamos em 1992, na área pedagógica, o Plano de Desenvolvimento da Escola, que consiste num plano de metas em forma descritiva e negociada. Ensinamos a fórmula. Cada escola detalha o seu plano. O aluno está aprendendo o que estamos ensinando? Os professores estão dando o currículo? As instalações melhoraram?

VEJA – Isso não deixa o secretário sem o que fazer?

MARES GUIA – Não, a não ser que ele tenha um pendor natural para comprar panelas. Se não, deixando de perder tempo com clientelismo e bobagens burocráticas, dá para fazer mais coisas. E coisas mais importantes, como tratar da capacitação e da carreira do professor ou da avaliação do ensino. Avaliação porque as escolas não tinham dados sobre elas mesmas. Sabiam quantos eram seus alunos, quantos passavam, quantos repetiam o ano e acabou. Em Minas, desde 1993 todas as escolas da rede estadual são avaliadas anualmente. Na média, isso representa examinar 500 000 alunos num mesmo dia. E todo colegiado é convidado a ir à escola ao dia da prova, para fiscalizar. É um acontecimento.

VEJA – Com que resultados?

MARES GUIA – Fica-se sabendo onde estão os problemas. A escola que sabe seu resultado fica também sabendo da média geral das outras escolas na sua cidade, sua região e em todo o Estado. Sabe, portanto, como vai seu ensino. Se numa pergunta de português que 35% dos alunos acertaram a média da cidade foi 52%, sabe quanto se desviou do padrão. Isso em cada questão, na matéria, no conjunto das provas. Monitorando a qualidade, promove-se o aperfeiçoamento contínuo. Cada escola passa a ter indicadores de desempenho, para poder melhorá-lo. Sem isso, não se faz nada além de reclamar de salário, dizer que o professor ganha pouco, que o aluno é pobre, desdentado, desnutrido.

VEJA – Não é assim mesmo?

MARES GUIA – É, mas não funcionar como álibi estrutural da educação. O professor, se quiser, tem todos os álibis para não ensinar. Ganha mal, sofre com o clientelismo, o aluno é marginalizado. Só que ele fez concurso para a carreira, nem tudo se resolve com choro, e o aluno é um ser humano. Além disso, mesmo ganhando mal, melhora o amor-próprio fazer um trabalho decente. A compensação salarial do professor é reprovar 45% da sua turma? Com a avaliação, a secretaria passou a ter o que cobrar do magistério, em vez de só ouvir cobrança. Isso foi um passo importante para voltar a pensar em educação em Minas. É como botar o termômetro para ver se há febre ou não. Escolher qual o mecanismo que usará para debelar a febre, cabe à escola definir. Os alunos não estão aprendendo por falta de livro na biblioteca? Vamos comprá-los. É porque a professora não sabe ensinar? Vamos treiná-la ou trocá-la. E, se a situação for muito ruim, a secretaria intervém.

VEJA – Mas voltemos aos salários dos professores…

MARES GUIA – Pegue-se Minas Gerais, que está bem, com a economia crescendo etc. O PIB do Estado anda pela casa de 60 bilhões de reais. Imagine-se que isso fosse a Suécia, o país de maior distributividade do mundo, e que 70% da renda fosse para remunerar o trabalho. Cada trabalhador levaria cerca de 500 reais por mês. O professor com diploma universitário, trabalhando oito horas, recebe 1.000 reais. A professora primária ganha 520. O piso aqui está 200 reais acima do que o MEC quer fixar como mínimo para o magistério por reforma constitucional. O orçamento da Educação passou de 600 milhões de reais em 1991 para 2 bilhões, praticamente sem expandir o número de alunos e professores. Com o Plano Real, a receita estadual dobrou e o salário no magistério triplicou. Isso quer dizer que Minas preferiu gastar com educação uma verba que poderia botar em pontes, estradas ou hidrelétricas. E daí, isso quer dizer que o salário ficou bom? Não. Isso quer dizer que não ha economia para multiplicá-lo.

VEJA – Essas novidades vieram para ficar?

MARES GUIA – Acho que sim. Já estamos para entrar na terceira eleição de diretores e na terceira avaliação de aprendizado. Hoje só um político muito corajoso desmancharia o sistema. A escola foi tirada das mãos do clientelismo e entregue a quem se interessa por ela. Livrou-se a educação de diagnósticos absurdos, como aquela conversa de que quase metade das crianças abandonava a escola na 1ª série. Deu-se a devida atenção ao problema da repetência. Acabou-se com aquela mania de construir escola. Eu, como secretário, levava isso tão a sério que me recusava a comparecer a inauguração de prédio. Visitava escolas funcionando. Em Minas, tudo em matéria de ensino básico pode estar ainda por fazer. Mas pelo menos o Estado começou a caminhar na direção certa.

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